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O verdadeiro pensamento pensa contra si mesmo
Há tempos, as pesquisas em inteligência artificial
procuram criar um computador que tenha a complexidade de um cérebro humano.
Bem, certos setores do debate nacional de ideias
conseguiram o inverso: criar cérebros que parecem mimetizar as restrições de um
computador. Pois eles são como hardwares que suportam apenas um pensamento
binário, onde tudo é organizado a partir de "zero" e "um".
De fato, o Brasil tem de conviver atualmente com
debates onde o mundo parece se dividir em dois. Não há nuances, inversões ou
possibilidades de autocrítica.
Jean-Paul Sartre costumava dizer que o verdadeiro
pensamento pensa contra si mesmo.
Este é, por sinal, um bom ponto de partida para se
orientar em discussões: nunca levar a sério alguém incapaz de pensar contra si
mesmo, incapaz de problematizar suas próprias certezas devido à redução dos
argumentos opostos a reles caricatura.
Afinal, se estamos no reino do pensamento binário,
então só posso estar absolutamente certo e o outro, ridiculamente errado. Daí
porque a única coisa a fazer é apresentar o outro sob os traços do sarcasmo e
da redução irônica. Mostrar que, por trás de seus pretensos argumentos, há
apenas desvio moral e sede de poder.
Isso quando a desqualificação não passa pela
simples tentativa de infantilizá-lo. Alguns chamam isso de "debate".
Eu não chegaria a tanto.
Infelizmente, tal pensamento binário tem cadeira
cativa nas discussões políticas.
Se você critica as brutais desigualdades das
sociedades capitalistas, insiste no esvaziamento da vida democrática sob os
mantos da democracia parlamentar, então está sorrateiramente à procura de
reconstruir a União Soviética ou de exportar o modelo da Coreia do Norte para o
mundo.
Se você critica os descaminhos da Revolução Cubana
ou a incapacidade da esquerda em aumentar a densidade da participação popular
nas decisões governamentais, criando, em seu lugar, uma nova burocracia de extração
sindical, então você ingenuamente alimenta o flanco da direita.
Esse binarismo só pode se sustentar por meio da
crença de que nenhum acontecimento ocorrerá. Tudo o que virá no futuro é a
simples repetição do passado. Não há contingência que possa me ensinar algo. Só
há acontecimento quando este reforça minhas certezas.
O resto é "fogo-fátuo" e conspiração. É
possível encontrar modelos desse raciocínio à esquerda e à direita. No entanto
não precisamos de nenhum deles.
Precisamos de um pensamento com a coragem de
admitir acontecimentos que nos desorientam. Pois - e este é um dos elementos
mais impressionantes da vida - quando fechamos os olhos para tais
acontecimentos, eles, de fato, desaparecem.
Artigo do professor Vladimir
Safatle, do Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo (USP). Publicado na Folha de São de 06.09.2011

3 comentários:
Abaixo o preto-no-branco e viva os vários tons de cinza!!!!!!! =]
ResponderExcluirO ideal é sempre discutir, trocar ideias e crescer. Outro dia um conhecido me falou uma coisa que eu achei muito interessante: conhecimento é a unica coisa em que você me dá o seu, eu te dou o meu e nós dois ficamos com dois. Bacana isso, né?
ResponderExcluirMuito bacana, e só pra completar, o conhecimento é a única coisa que ninguém pode nos tirar, apenas compartilhar.
ResponderExcluirComenta aê!