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Texto: Safári

Posted by Marcinha on 2 de dezembro de 2011 20:06 in ,
Olá, amigos retalhenses! Venho publicar outro texto, de um desafio de imagem que a Nanda me passou e que estava pendente há séculos... Aliás, pelo menos para mim tem sido muito estranho esse tal de "processo criativo". Desde que recebi essa imagem, há pelo menos dois meses, que venho olhando para ela periodicamente sem ter a menor idéia do que eu iria escrever. Esta noite, entretanto, tive vários sonhos que nada tinham a ver com este tema, sonhando a noite toda que eu perseguia hamsters que eu precisava prender numa caixa de papelão. Só que nas primeiras horas da manhã, esse texto todo me veio à mente, e eu o escrevi em poucos minutos. Alguém conseguiu entender como é que a coisa acontece? Acreditem... nem eu!

Safári




Ela correu o mais que pôde, acelerando as passadas até seus músculos queimarem, mas conseguiu alcançá-lo. Saltou sobre ele, pegando-o de lado, e ambos perderam o equilíbrio, rolando no chão por vários metros, dada a velocidade em que vinham. Logo que pararam, ele levantou a cabeça, e encarou-a imóvel e indignado. Ela levantou a cabeça em seguida, mas não para encará-lo. Ela queria se certificar de que o enorme veículo ainda se distanciava, sem que seus ocupantes tivessem percebido coisa alguma. Chegando à conclusão de que o mato alto e o ronco do motor do próprio carro haviam feito com que os dois passassem despercebidos, ela se voltou para o leão, que ainda a encarava bastante contrariado.
- Está fazendo tudo errado, novato! Não é assim que agimos por aqui! De onde diabos você veio? - a leoa indagou, em seguida começando a lamber as patas, com um ar indiferente.
- Eu estive numa porcaria de jaula tempo demais pra sequer me lembrar de onde vim, se é o que quer saber. Depois fiquei doente e quase morri! - o leão respondeu, enquanto se levantava - Até que um monte de humanos de óculos e cabelos compridos chegou, e eles me levaram para um lugar liso e branco, onde me espetaram, me cortaram, me costuraram, me enfaixaram, e me dopavam cada vez que chegavam perto! E me mantiveram prisioneiro por bastante tempo! - ele andava em torno dela, enquanto esbravejava - Depois parece se cansaram, me trouxeram pra cá e me largaram aqui. E agora estou tentando viver a vida um pouco, o que inclui perseguir essas drogas de humanos e esses veículos fedorentos que eles usam!
- Ei, calma, campeão... - disse a leoa, levantando-se para encará-lo - Tudo bem, eu não sabia que tinha passado por isso tudo. Mas procure entender o que aconteceu, certo? Os caras de óculos eram veterinários. Salvaram sua vida.
- Salvaram minha vida me drogando e me estripando daquela maneira?!
- Se o estriparam, depois o costuraram muito bem, por que você parece inteiro pra mim. - ela retorquiu, contendo a vontade de rir - Além do mais, ainda se sente doente como antes?
- Um pouco...
- Ah, pára com isso! - ela o interrompeu, com uma expressão divertida - Correu como um guepardo ainda há pouco, quase não consegui alcançá-lo! Minhas pernas ainda queimam!
Ela se espreguiçou como uma gata, esticando a coluna e agitando a cauda no ar, depois esticou as pernas traseiras uma a uma. O leão por um momento se esqueceu do que falavam, mas logo em seguida sacudiu a juba e voltou ao assunto.
- Certo, e qual é o ponto? - ele indagou, esforçando-se para manter o foco - Quais são as regras por aqui, afinal?
- Por aqui agimos da seguinte forma: vivemos nossas vidas, caçamos, comemos, dormimos, criamos nossos filhotes... interagimos com os outros animais, lutamos por nosso território... e toleramos a presença dos humanos que vem nos observar enquanto fazemos tudo isso. Eles gostam de olhar por algum motivo. Os que tem dinheiro suficiente vem até aqui e olham por si mesmos, então tiram fotos e fazem filmagens, para o os que não podem vir ainda assim possam nos ver.
- Por que?! - indagou o leão, surpreso.
- Eu realmente não sei. - afirmou a leoa com sinceridade - Alguma coisa dentro deles faz com que alguns larguem sua próprias famílias por longos períodos, pra virem até aqui cuidar de nós. Existem dois tipos, os veterinários e os biólogos. Costumam vir juntos e, de um modo geral, os veterinários são os que nos espetam, e os biólogos são os que colocam umas plaquetinhas de metal em cada um de nós, como essa aí na sua orelha. Dizem que precisam saber quando a nossa população aumenta ou diminui.
- Como sabe tanto sobre esses bárbaros?
- Sou resistente um pouco mais aos dardos tranqüilizantes. Quando eles se aproximam, ainda estou acordada, mas eles não sabem. - ela afirmou, vangloriando-se de sua esperteza - Então eu escuto tudo o que dizem, e aprendo muita coisa com isso. E eles não são bárbaros, novato. Descobri que eles tem amor por nós, a ponto de nos darem nomes, em vez de se referirem a nós pelos números das plaquetas que nos colocam. Costumam me chamar de Joplin, e se referem a você como Hendrix. Esses nomes vieram de alguma coisa chamada Rock, mas ainda não entendi do que se trata, por que só um dos veterinários fala disso.
- E por que nos deram nomes, vocês todos aceitam que eles venham aqui e façam o que bem entenderem? - desafiou o leão.
- Você é cabeça dura, hein, novato? - ela ralhou, enquanto tentava manter a calma - Desde que eles chegaram, nunca mais ficamos doentes. Se algum de nós fica doente, eles o levam, o curam, e o trazem de volta. Recebemos vacinas, vitaminas, e mais um monte de "inas" que mantém nosso bando mais saudável do que éramos antes deles chegarem. Vivemos mais, nossos filhotes morrem menos e estão muito mais fortes. E tudo o que precisamos é tolerar a presença deles.
- Mas o que diabos eles vem fazer aqui?!
- Eu não sei! - exasperou-se a leoa - Tudo o que sei é que aqueles que nos fotografam são chamados de turistas, e gastam uma boa grana para vir até aqui. Parte desse dinheiro chega aos biólogos e veterinários, e é assim que eles compram todas as "inas" que nos trazem saúde. É um círculo, e traz benefícios pra nós, desde que nós cooperemos para que os turistas sempre queiram voltar e tirar mais fotos! É tão difícil assim compreender?!
O leão olhou a fêmea à sua frente, ela parecia bem zangada agora. Era jovem, bela e inteligente, e defendia seu ponto de vista como uma verdadeira leoa. Ele se perguntou se algum macho já estaria com ela, torcendo internamente para que não. A voz dele estava bem mais branda quando indagou.
- Certo. Então, onde eu me encaixo nesse esquema?
- Tudo o que precisa fazer é viver sua vida, campeão. E fazer de conta que eles não estão aqui. Deixe que o fotografem, por que eles vêm aqui para ver você. Eles fotografam também girafas e hienas, leopardos e elefantes, mas o que querem de verdade é ver o rei das savanas, o grande leão. Humanos tem essa mania, de fotografar os grandes. Existem turistas que fotografam humanos também, sabia? Só que estes recebem um nome diferente... é... "paparazzi", eu acho.
O leão a olhava fixamente, ouvindo-a falar. Ela sustentou o olhar dele, assim que se deu conta disso. Os dois se encararam por um longo momento. Então ele quebrou o silêncio.
- Você é um bocado esperta para um fêmea tão jovem. Seu marido deve se orgulhar bastante de você.
- Eu não tenho marido... ainda. - respondeu ela, em seguida dando-lhe uma patada de leve na face, como um filhote que brincasse com outro.
Ele urrou em reposta, fingindo-se zangado, e devolveu a patada, mas ela se esquivou com a rapidez de uma gazela entes de ser atingida.
- Precisa mais do que isso para me pegar, campeão! - ela desafiou, e desatou a correr pela savana, com o leão logo atrás em seu encalço.

Os meses se passaram.
Estava nublado naquela tarde em que o leão ouviu o ronco do motor, que já lhe era familiar. Enquanto o veículo se aproximava, o leão esquadrinhava tudo à sua volta, à procura dos pequeninos. Eles ainda não compreendiam o veículo dos humanos, e poderiam ser atropelados. Nesse momento o leão viu a cabeça de sua companheira se erguer da savana, e olhar para ele. Então ele percebeu que ela estava próxima, como sempre, zelando pelos filhotes.
O leão relaxou, no exato momento em que os turistas se erguiam do veículo já parado, e começavam a preparar suas máquinas. Enquanto o leão observava sua companheira deitada na relva alta, e perto dela a relva se mexia, indicando onde seus três filhotes brincavam, os turistas tiravam mais e mais fotos daquela bela família de leões.
Nesse momento o leão pensava:
- É... a vida é boa, quando paramos de complicar as coisas.

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3 comentários:

  1. Muito bom!
    Essa imagem é realmente difícil de encontrar uma história interessante, e eu gostei muito da sua.
    O processo criativo é realmente um mistério, e pra mim acontece de maneiras bem exóticas na maioria das vezes. rsrsrs
    Parabéns!

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  2. Muito show!
    Peguei pesado nessa imagem, mas vc foi muito bem no desafio!
    Demorei para ler, porque queria ler com calma.
    Adorei a estória, e tem romanceeeee!
    Obrigada por essa bela estória, maninha.

    PS: Hamsters e caixas? Vc tem problemas, kkk.

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  3. Show. Suave como e simples como a vida deve ser. Gostei muito deste texto. Só achei que no final ele se chamaria Alex e dançaria para o pessoal do Zoo de Nova York. Rs.

    E eu te entendo. As vezes estou ouvindo uma música e "PAM!" uma história com começo, meio e fim surge em minha mente.

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