Agora, vamos à parte final. Ficou grande porque tinha muita coisa para explicar. Espero não ter deixado nenhuma ponta solta!
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A jornada era longa e, por isso, perderam a noção do tempo. Paravam para comer e descansar quando seus corpos não aguentavam mais.
O dia se fez noite num piscar de olhos. E logo o tempo perdeu qualquer significado, com os dias se sucedendo, um a um, numa rotina constante. O ritmo da marcha foi diminuindo conforme Anna ficava cada vez mais debilitada. Ela oscilava momentos de lucidez, delírio e apatia, cada instante do dia sendo uma incógnita. Chegou a um ponto em que ela não conseguia mais andar e Ray foi obrigado a carregá-la. Sem saber direito o que procurar, não tinham tido muito sucesso ainda na busca da cura, mesmo vagando pela tal floresta há três dias já. Num dos momentos de pausa, Ray debatia-se internamente com seus pensamentos.
- Não há esperança. Essa floresta é imensa, eu nem sei por onde começar!
Ele olhou para a faca que jazia pendurada em seu cinto. Pegou-a, sentindo o peso em sua mão. Encarou Anna que dormia.
- Será que estou fazendo a coisa certa? - pensou.
Começou a andar de um lado para o outro, aflito, sem saber o que fazer. Encarou a faca. Será que Ametista estava certa, afinal de contas? Ele estava iludido, procurando por uma cura que não existia? Aproximou-se de Anna. Ela parecia tão serena dormindo. Mas aquilo era uma ilusão, e ele sabia. Nos últimos dias ela estava cada vez mais agressiva, tornando a busca deles ainda mais difícil. Era impossível carregá-la enquanto ela tentava arrancar sua orelha com os dentes. Agachou perto dela e fez um carinho na sua cabeça, enquanto murmurava:
- Você sabe que eu te amo, não sabe? Mas, infelizmente, não estou vendo outra saída.
Tenho que matá-la para salvar você. Quando for um zumbi completo, talvez eu não consiga ter forças para te deter sozinho, armado apenas de uma faca.
Encostou a arma no pescoço dela e começou a suar de nervoso. Estava num dilema, sem saber como proceder, quando sentiu uma forte pancada na cabeça e caiu desmaiado.
...
Acordou com gosto de sangue na boca, e percebeu que ela havia sumido. Praguejou e levantou rapidamente, sentindo tudo girar.
- Que bosta! - murmurou - só faltava essa!
Ficou parado alguns minutos, esperando tudo se reajustar novamente. Começou, então, a andar em círculos pela floresta, e depois de algumas horas, a frustração já o dominava por completo. Começou a gritar, como uma forma de descarregar a raiva:
-Vá para o inferno seu maldito! Devolva a Anna para mim, agora!
Olhou em volta, mas não percebeu nenhum movimento. Continuou:
- Covarde, é isso que você é! Me atacando pelas costas! Vem aqui me pegar, se você for homem! Eu só queria a merda da cura! Mas agora estou preso nesta maldita floresta, completamente perdido, sem a Anna, sem a cura, sem nem uma resposta! Maldito! Mil vezes maldito!
Neste momento Ray sentiu o cabo de uma espingarda se encostar entre suas omoplatas e uma voz calma e conhecida lhe dizer:
- Calma, meu rapaz. Somos amigos aqui. Vire-se devagar.
E assim Ray o fez, sem acreditar em quem via.
- Juiz Reuben? O senhor está vivo?
O velho abaixou a arma e respondeu:
- Claro que estou, garoto! Quem você acha que te mandou aquele bilhete sobre o paradeiro de Anna?
- Então foi o senhor... mas como pode?
- Eu ia falar diretamente com você, mas quando cheguei em seu esconderijo, você não estava. Os tempos estão difíceis, eu não podia simplesmente sentar relaxadamente para te esperar, não é mesmo? Então rabisquei um bilhete e não assinei. Achei que o fato das chaves do meu carro estarem juntas ao bilhete já era mais do que uma assinatura.
- Mas...
- Como ela foi parar lá? Eu vi quando ela foi capturada. Persegui os zumbis e matei os dois numa jogada de muita sorte. Infelizmente um deles já havia arrancado um pedaço do ombro dela. Mas achei que mesmo assim valeria a pena o resgate. Naquela época não sabia que ela ia se transformar em um bebê zumbi. Mas foi até bom, não é mesmo? Hoje sabemos que há cura para a enfermidade. Enfim, eu estou devaneando, me desculpe. Coloquei-a no porta malas porque estou velho, não ia ter forças para carregá-la para o meu esconderijo e não fazia ideia de onde você estava na ocasião. Só depois consegui localizá-lo.
- Juiz, eu realmente o agradeço por tudo, mas você sabe onde ela está agora?
- Você vive perdendo esta menina, hem? - Reuben falou, deixando soltar uma gargalhada baixa.
- Senhor, é sério.
- Ok, desculpe. Forrest a levou.
- Oh meu Deus, mas Forrest é um deles agora! Temos que impedi-lo!
- Calma, calma. Forrest era um deles. Perceba a conjugação verbal. Ele foi curado e está tão são quanto eu e você.
- A cura é real então?
- Sim, totalmente.
- Mas como?
- Vamos fazer o seguinte: eu te levo até o doutor e você tira suas dúvidas diretamente com ele. A esta altura, Anna já deve estar em processo de purificação.
Ray acenou com a cabeça concordando, por medo de falar. Sentiu lágrimas chegando aos seus olhos. Anna sendo curada? Nem no seu pensamento mais otimista tinha acreditado realmente nisto. Mas era real, estava acontecendo.
...
Andaram durante muito tempo para chegar ao acampamento. O local era uma grande fortificação, como a que o povo de Ametista vivia. Ray parou e admirou aquela enorme arquitetura, maravilhado.
- Não fique aí parado, filho. Por dentro é ainda mais interessante.
- Mas, como... ?
- Pergunte ao cientista, ele vai saber te explicar melhor.
Virando-se para uma porta escondida nas folhagens, o juiz bateu e falou:
- Libertatem et honorem. - a porta se abriu sem nem um leve ruído.
Eles entraram e Ray se viu novamente entre várias barracas coloridas. Será que aquilo era alguma brincadeira de mal gosto?
...
- Então você é Ray Atlee, hum?
- Sim, e o senhor?
- Pode me chamar de Cientista, é como todos me chamam.
- Tenho muitas perguntas, nem sei por onde começar.
- Então me deixe explicar alguns pontos, e, se ainda restar alguma dúvida, você me pergunta diretamente, certo?
- Combinado.
- Muito bem. Dediquei a minha vida inteira a trabalhar pro governo. Solicitaram que eu criasse um vírus que debilitasse as pessoas, sem matar. Que elas se tornassem, então, facilmente manipuláveis. Assim não haveriam mais guerras e sim, países dominados sem nem uma gota de sangue derramada. E eu, em meu patriotismo cego, criei. Mas algo deu errado. A infecção saiu de controle, e as pessoas não continuaram vivas e cordatas e sim, mortas e sedentas de sangue.
- Certo, isso explica os zumbis. Mas porque o governo não contra-atacou? E porque os zumbis apareceram aqui e não em outro país?
- Eles colocaram o vírus em alguns condenados à morte, a título de teste. Não houve tempo para criarmos uma vacina, ou uma cura, tudo saiu rapidamente do controle. O governo, então, pegou alguns dos cidadãos mais influentes e jogou em refúgios como este em que você está agora. Como o vírus se propaga pela saliva do hospedeiro, eles não podiam correr o risco do presidente, por exemplo, virar um bebê zumbi.
- Mas como os zumbis sabem quem deve ser poupado? Porque só alguns passam pela mutação, o restante vira jantar?
- Ainda não consegui estudar isto a fundo, a criação da cura me sobrecarregou completamente. Mas tenho algumas teorias. Seria ou pelo tipo sanguíneo ou então por alguma particularidade no DNA... ou talvez seja uma terceira coisa, que eu ainda não atinei.
- Talvez... é... pode ser pelo tipo sanguíneo - Ray coçou a cabeça e complementou - Anna e Forrest são tipo AB positivo.
- É, talvez, mas isso são especulações.
Um silêncio envolveu a sala e Ray resolveu perguntar o que mais lhe interessava:
- Posso ver Anna?
- Claro, siga-me.
...
Anna estava em uma cela cujas paredes eram de um vidro bem grosso. Ray aproximou-se o máximo que pôde e bateu na divisória para chamar a atenção dela, que estava de costas. Ela virou-se lentamente, agressividade no olhar. Ele deu um passo para trás, assustado. Achava que a esta altura, estaria curada.
Ela começou a ficar enlouquecida e ele temeu que não houvesse mais tempo. Ray virou-se para o Cientista e falou, angustiado:
- Ela já não estava sendo purificada?
- Sim, mas o processo é lento e doloroso. Ela tem que piorar antes de melhorar.
Olhando para o rosto desanimado do rapaz, o Cientista complementou:
- Quer um conselho, meu filho? Você aqui será inútil neste momento. Vá comer alguma coisa. Quando Anna estiver curada, você será o primeiro a saber.
- Não posso deixá-la sozinha, passando por isso.
- Pode e deve, ela não sabe quem é você. Evite este sofrimento desnecessário. Vá.
Ray saiu da prisão cabisbaixo, sem saber bem para que lado ir e não se importando com isso. Não estava com estômago para comer nada, sua cabeça era um turbilhão confuso. Escutou passos correndo em sua direção e virou-se alarmado, com a faca em punho. Deparou-se com um Forrest surpreso.
- Ray, meu amigo, quanto tempo!
- Forrest, você realmente está curado! - e, dizendo isto, abaixou a faca e se aproximou para um abraço camarada - Você não faz idéia do tamanho da felicidade que eu estou sentindo por isso!
- Não é maior que a minha, meu amigo! - eles se abraçaram por um tempo, radiantes, e depois se afastaram, com sorrisos nos lábios - Devo isso ao meu velho. Ser filho de militar tem suas vantagens, não é? Se não fosse por ele, ainda estaria por aí perseguindo pessoas e babando.
- Forrest, só você mesmo para fazer piada de algo tão aterrador.
- Um dia, quando tudo isso acabar, vou me aproveitar da minha experiência como zumbi e vou escrever um stand up comedy sobre isso. O que você acha, meu amigo?
- Acho que você é pirado. Tem certeza que seu cérebro não ficou com sequela zumbi?
Os dois amigos riram a valer. Mas Forrest, de um momento para o outro, ficou sério e falou:
- Acabo de me lembrar de uma coisa, gostaria de pedir desculpas a você.
- Desculpas, pelo que?
- Pela coronhada que te dei na floresta.
- Seu filho da mãe! Foi você! Porque fez isso?
- O tempo para Anna estava se esgotando, logo ela não teria mais salvação. A ordem que eu tinha era para pegá-la rapidamente e levá-la para o Cientista. Como a última vez que nos vimos, eu era um zumbi, você poderia começar a me crivar de perguntas me vendo são novamente e eu não ia ter tempo ou conhecimento para te explicar tão bem quanto o Cientista o fez, então achei mais fácil te apagar. Desculpe.
- Tudo bem, foi por uma boa causa. Mas, por favor, na próxima não faça isso. Dá uma dor de cabeça do caramba depois.
- Certo, combinado. Vem comigo, vamos na minha barraca. Papai deve estar terminando de preparar o almoço por agora. Você será bem vindo para comer conosco.
...
O almoço estava muito bom, e Ray repetiu três vezes. Aquele tempo todo vagando com Anna, comendo apenas algumas frutas, o tinha deixado faminto por algo salgado e quente. Forrest então lhe ofereceu um saco de dormir que foi aceito sem nenhum protesto e Ray pode, enfim, dormir um sono tranquilo como há muito não experimentava.
...
Acordou sentindo leves beijos na bochecha. Olhou em volta, meio atordoado e se deparou com uma Anna sorridente. Segurou seu rosto com as duas mãos para ter certeza de que aquilo era real.
- Anna?
- Sim, sou eu! Eu de verdade, eu curada! Mal posso crer!
- Nem eu, meu amor, nem eu!
- Posso te pedir um favor?
- Claro, tudo o que você quiser.
- Chega um pouquinho pra lá, Ray, que eu quero deitar aí com você... estou com uma saudade!
- Nem precisava pedir, minha linda.