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Estátua

Posted by Baltazar Escritor on 26 de setembro de 2011 23:47 in ,




Um suspiro, juras de amor e compreensão, naquela tarde de outono, em que as folhas caiam despindo as árvores sem pudor, em um parque escondido no centro da cidade. Escondido porque ninguém se lembrava de passar por lá, de sentir aquela grama, ainda verde apesar da estação, roçar nos pés e o vento com cheiro de natureza. A estátua central, de um artista desconhecido, foi doada para o parque no que ele inaugurara, retratava um casal. Os braços entrelaçados no momento do beijo, pareciam sentir, pareciam vivos e de alguma forma belos, apesar do corte malfeito de granido do qual saíram.
O parque, apesar da falta de visitantes, era cuidado por uma equipe de zeladores da prefeitura, a grama cortada, o lago limpo e os lixos recolhidos. A estátua, quem olhasse para ela diria, certamente.
“Que lindo!”
Ou.
“Não passa de um clichê romântico!”
O fato é que mesmo suspirando, mesmo prometendo amor eterno e um mar de realização, aquela estátua era frágil, aquela estátua não sentia o que retratava. Mas é claro que o artista não levou em consideração os sentimentos daquele pedaço de granito, que sentia-se importante e pensou que retrataria a vitória de um rei, a entrada triunfal de um conquistador numa terra nova. De grande glória e medalhas de honraria do fim de um sofrimento, aquele informe bloco mineral virou a cena de uma tragédia.
Tragédia. Se você visse a estátua não pensaria duas vezes, diria se tratar da cena mais romântica concebida por um escultor. A estátua conta uma história, que difere muito das interpretações de quem à vê.
Cinco anos antes dela aparecer no parque, um artista ainda desconhecido e que continuaria assim até o fim dos tempos, se enamorou de uma moça dançante, que passeava alegremente pelo enorme terreno baldio que muitos usavam como atalho de um lado a outro da cidade, terreno este que posteriormente seria o parque, ou deveria dizer palco?
O andar macio, o leve tremular do vestido no vento, despertou a atenção de tão diferente artista.
“É, realmente, a visão mais bela!” Disse ele, alto demais.
A moça, que caminhava alegremente parou de súbito e o encarou. A leve sugestão de um sorriso no rosto corado, mandou um beijo acanhado, que escorregou pelas pontas de seus dedos e foi parar diretamente no coração do artista. Tomado pelo impulso criativo que o amor desperta, ele buscou freneticamente pelo grande terreno uma preciosidade que viu outro dia, um bloco gigante de granito. Não poupou despesas, contratou o guincho, o caminhão, a escavadeira, para arrancar aquela pedra do solo, mandou deixarem-na em frente à sua casa. Por dias ele buscou o ângulo perfeito na memória, a cena que melhor descrevesse a sensação, o gozo daquela linda criatura, divina, pensava.
A mente à todo o vapor ele começou a frequentar o terreno baldio, no intuito de ter mais um vislumbre da beleza em carne, que seria sua obra prima, o ápice de sua arte. Dias e noites passados em extrema euforia, as semanas, os meses, se alongando, mas ele não perdia a esperança. Até que um dia, um dia porém, ele à vê novamente, o mesmo andar digno das musas inspiradoras, com um único defeito, um ser totalmente desproporcional e horrendo, certamente o namorado dela, caminhava ao seu lado.
Ela passa por ele, braços dados com o sujeito, e repete o beijo tímido, mandado pelas pontas dos dedos. Ele se decepciona, iludido, um tanto insano, enxerga naquele gesto um pedido de socorro, ele corre ajuda-la, o sujeito feio tenta segurá-lo.
“Quem é você?” Pergunta.
O cinzel de escultor cravado na garganta é a resposta, um súbito maremoto de ódio. Ele se ergue vitorioso, o inimigo no chão. Ele esperava os louros da vitória, os ternos beijos e abraços agradecidos, mas o que encontra é uma cara deformada pelo horror, ela grita, esperneia.
“Monstro, monstro! O que você fez? Socorro!”
Num relance de pânico, ele a agarra, a vira para si para que ela retome a razão, que veja que ele sim é seu eterno amante, ela tenta se soltar. Daí a tragédia, inconformado ele lhe espeta o cinzel pelas costas, direto no coração, ela suspira e desfalece.
O remorso, ele sai correndo, volta pra casa, se lava, se precipita na cama, uma semana, duas, ele resolve tentar mudar a cena, o bloco de granito ainda está lá. Com o mesmo cinzel ele trabalha com afinco. Os dias se transformaram em semanas, até que, depois de um mês trabalhando sem descanso ele finaliza a escultura. Ela retrata a cena como deveria ter sido, ela nos seus braços, em sua mão, em vez do cinzel, uma rosa. O esforço, o cansaço, a dura realidade que mostrou que a escultura não mudaria o acontecido. Não suporta a culpa, enterra o cabo do cinzel no chão e joga-se em cima dele de peito aberto.
A família, que nunca soube da história completa, não quis ficar com uma escultura que lembrasse tanto o fim do artista, chamaram a prefeitura para que a recolhesse. O fiscal perguntou se era doação. Não, não é doação. Tudo bem então.
Pouco antes dela ser destruída, os vereadores procuravam um marco pro novo parque, recém inaugurado, não queriam desperdiçar a verba, procuraram em todos os setores algo que pudesse servir. E encontraram. O que mais espanta as pessoas que passam por lá é a suavidade da rosa.


Fonte: Plena Loucura

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7 comentários:

  1. Baltazar, é uma história triste de amor, mas é uma escultura de palavras. Como toda obra as interpretações podem ser as mais diversas, mas eu entendi como uma metáfora as coisas que ninguém vê, o que está realmente associado as mais diversas formas de arte que nos rodeiam.
    Achei o texto belíssimo, mesmo que tenha compreendido errado o intuito por trás dele.

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  2. Bonito e interessante este conto. Amor e loucura podem criar um ato de horror como o assassinato, mas também podem criar uma obra de arte como a estátua. Show de bola, Balta. :)

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  3. Obrigado, obrigado. (E a platéia vibra (com o tombo do artista)). Vocês são demais mesmo, show de bola, afinal o Retalhos é composto pela mais fina nata dos escritores contemporâneos, todos vocês são os mais célebres romancistas, cronistas, poetas, e... (bem, a lista é longa!) que eu já vi, sinto-me honrado por escrever com e para vocês ^^

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  4. nossa... que triste... mas eh uma bela estória. as vezes o que a gente ve por fora pode nao refletir a realidade. o autor pode pensar em "a" e todo mundo entender sua obra como "b". dá o que pensar. adorei balta!












    gente ve por fora pode nao refletir a realidade. o autor pode pensar em "a" e todo mundo entender sua obra como "b". dá o que pensar. adorei balta!

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  5. toda vez que eu comento pelo cel, da tilti. releve...

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  6. Wooooow, nossa, to sem palavras...
    Outra parte interessante é que a Nanda havia me desafiado com uma imagem de uma escultura, e postei meu texto hoje, rss... só agora li o seu por que náo queria me influenciar. Então, temos no blog agora duas visões bem distintas do que uma escultura pode representar...

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