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Mãe Sem Filha, Filha Sem Mãe (Desafio de Imagem - Tema: Dia das Mães)
12/05/2013
14:00h
São quatorze horas agora, de domingo, o segundo do mês. Estamos em maio e venta bastante lá fora nesse momento, embora o ar condicionado do carro mantenha meu mundo estabilizado, do jeito que eu gosto.
Como o meu motorista me informou que chegaremos em vinte minutos, aproveito o tempo para atualizar o diário que mantenho no notebook. Não sei onde meu terapeuta quer chegar me obrigando a fazer essas anotações.
Dona Germana me telefonou hoje, misteriosamente, logo após o almoço, me interrompendo enquanto eu relaxava na banheira. Me perguntou quando vou visitá-la. Não entendo o motivo de tanta carência, já expliquei à minha mãe que trabalho demais e não tenho tempo. Repeti isso para ela mais uma vez. Ela me respondeu que sabe como eu sou e que foi por isso que marcou o compromisso desta tarde para mim. Ah, mamãe e seus trabalhos assistenciais. Não sou contra, mas detesto quando ela me envolve nisso.
Divaguei por algum tempo sem escrever e já chegamos ao endereço. Orfanato São Francisco de Assis, diz a tabuleta na porta. Ah, meus sais... isso vai ser pior do que eu pensava.
14:38h
Acabei de sair do orfanato, depois de assinar um termo de responsabilidade pela guarda de Emily Eduarda da Silva por uma tarde. Ela está sentada no banco traseiro ao meu lado agora. Se pela manhã alguém me dissesse que esta tarde teria uma criança de seis anos sentada no meu banco de couro importado, eu teria dado uma sonora gargalhada. Mamãe está cada dia mais engraçadinha em suas piadas comigo.
Ela já havia acertado tudo previamente com a diretora do orfanato. Minha função desta tarde é conduzir Emily Eduarda à uma escola de ballet, onde uma professora lhe dará uma aula demonstrativa. É um sonho da menina, ao que parece. Depois devo levá-la a minha casa e mantê-la lá por um mínimo de uma hora. Não vi sentido algum nisso, mas a diretora me disse que mamãe insistiu nesse ponto. Só então poderei devolver a criança ao orfanato e dar este dia bizarro como encerrado.
14:57h
Meu Jesus! É normal uma criança fazer tantas perguntas ou eles tomam estimulantes no orfanato?
15:30h
Um momento de paz. Já estamos na Escola de Dança que pertence à Madame Eslava, uma bailarina de muito talento, que aparenta beirar os 70 anos agora. A polaca em pessoa fez questão de ensinar Emily hoje. As duas parecem estar se divertindo. A menina é mais esperta do que pensei à primeira vista. Calçou sozinha as sapatilhas que trouxe consigo e reproduz com bastante exatidão os movimentos que lhe são demonstrados. Me faz lembrar minha infância, quando também fiz aulas aqui.
Entre um passo e outro, Emily sempre me olha e sorri. Parece estar eufórica. Pobre menina, parece que não sai daquele orfanato há bastante tempo.
Ops... fiquei tanto tempo observando as duas que agora Madame está me chamando para participar. E, em se tratando de Madame Eslava, não posso dizer não. Ai... lá vou eu...
16:25h
Estamos de volta ao carro, rumo à minha casa. Emily finalmente se distraiu com um dos jogos do meu iPad. Estava tão entusiasmada que pensei que nunca mais pararia de falar.
O final da aula de ballet foi, no mínimo, inusitado. Emily disse que queria dançar comigo assim que entrou uma sinfonia de "Betouuuven" (eu nunca vi ninguém fazer um bico tão grande para pronunciar esse nome).
Eu não tinha idéia do que ela pretendia até que colocou os dois peszinhos sobre os meus. Minha Nossa Senhora da Griffe Européia, a pimentinha da garota subiu no meu Scarpin Italiano! Ela segurou minhas mãos bem apertado e aquele par de olhinhos brilhava tanto que eu não consegui fazer outra coisa senão rir. Então começamos nossa "vauuusa", como a bicudinha havia me pedido. Eu conduzia a pequena pelo salão de tábua corrida, a largas passadas, com os peszinhos dela sempre sobre os meus. Madame Eslava aplaudia, dizendo que estávamos indo muito bem, enquanto Emily ria como se lhe fizessem cócegas.
18:39h
Já estou em casa há cerca de uma hora e meia, mas não tive um minuto para escrever, exceto agora.
Emily estava com fome assim que chegamos. Pedi à Socorro, minha cozinheira, que preparasse a mesa para um lanche. Emily se sentou e se serviu sozinha! Não me lembro de ter tamanha desenvoltura nessa idade. A parte mais interessante foi vê-la "esculpir" a pasta de nozes sobre a torrada integral. Creio que nem Michelangelo tenha alisado uma superfície com tanta concentração nem por tanto tempo.
Depois do lanche, levei-a para ver a sala de Home Cinema. Ela pareceu adorar o tamanho da tela. Me perguntou sobre um filme... "Investigando Nemo" ou algo do gênero. Manuseou meus DVDs em vão, por que só tenho filmes cult. Mas fiquei intrigada quando ela me mostrou a capa do "Drácula", me perguntando se aquele da foto não era o "Lugouuusi". Onde essa menina assistiu a um filme de 1931?!
Ainda estava imersa nesse pensamento quando Fluffy, meu Lulu da Pomerânia, invadiu a sala como se corresse pra salvar sua vida. Foi uma espécie de amor a primeira vista quando Emily e ele bateram o olho um no outro.
Desde então ela o chama sem parar de Fofinho enquanto estala os dedinhos para chamá-lo, ou os dois correm feito loucos, brincando de pegar. Fluffy está esbaforido, pára de vez em quando com uma língua enorme para fora enquanto respira ofegante. Emily está suada a ponto dos cachos grudarem no pescoço, mas ela não se cansa nunca. Os dois saltam e rolam sobre os sofás e os tapetes. Rio comigo mesma enquanto penso que dona Jacira terá um bocado de trabalho extra amanhã. Há marca de pequenas pegadas suadas por todo o sofá...
Pela primeira vez testo a acústica perfeita que o corretor me prometeu quando comprei esse imóvel. Realmente, a gargalhada de Emily ecoa por toda a casa, como uma melodia.
20:21h
Estou no carro, voltando para casa. Acabei de deixar Emily de volta no orfanato.
Ela se pendurou no meu pescoço quando nos despedimos, com um abraço tão apertado que eu achei que ela nunca mais me soltaria. Ela me disse "eu te amo". Meu Deus, por que ela me disse isso de modo tão doce?
Depois que ela se foi, conversei longamente com a diretora da instituição. Assinei mais papéis do que achei que assinaria essa noite.
Estou tremendo tanto que nem consigo digitar. Estou apavorada e... eufórica! Que Deus me ajude e eu não esteja fazendo nenhuma besteira.
22:50h
Jesus! Nem sei por onde começar!
Germana... Mamãe me telefonou ainda há pouco. Queria saber como tinha corrido o compromisso da tarde. Eu disse a ela que tudo tinha corrido bem e que eu tinha algo muito sério para dizer.
Ela ficou muda ao telefone. Ela sabe que extrapolou desta vez, me enviando sem o meu consentimento na missão tomar conta de um criança. Ela sabe que isso é algo que eu jamais deixaria passar sem dar uma faniquito.
"Eu preciso te comunicar algo", eu disse, muito séria. "Eu vou adotar a Emily. Já assinei os papéis dando entrada no pedido de adoção hoje mesmo."
Ela continuou muda. Então começou a chorar. Eu senti o chão desaparecer sob meus pés. Esperava qualquer reação, menos um choro tão sofrido.
Desesperada, perguntei se ela estava bem.
Ela me disse que estava ótima. Que estava emocionada, mas estava ótima.
Então ela me disse que eu acabara de dar a ela o melhor presente de dia das mães que eu poderia dar.
Dia das Mães. Hoje. Meu Deus. Isso nem me passou pela cabeça.
Ela me disse que sabia que eu esqueceria, como sempre. Disse que queria me dar a oportunidade de ver como uma família pode fazer falta para alguém em um dia como hoje. Nunca pensou porém que meu coração fosse tocado a ponto de eu desejar ser mãe daquela criança.
Ela me disse que estava mais que feliz.
Desejei Feliz Dia das Mães a ela. Ela me desejou o mesmo. Isso foi inusitado, e divertido. Perguntei a ela se já estava indo dormir, e ela me disse que não. Pedi que me esperasse então, pois estava indo vê-la.
Estou no carro, a poucas ruas de sua casa. Ainda há tempo de dar um abraço na minha mãe no dia dela.
6 comentários:
Marcinha, li seu texto logo cedo, por volta de 7h. Chorei emocionada. Tudo bem que eu sou a maior manteiga derretida mas seu texto foi megaaaa fofo!
ResponderExcluirE apesar de não ser tão fácil assim adotar uma criança, sim... crianças tem esse poder de mexer conosco, de mudar nosso mundo e fazer nosso mundo virar de ponta cabeça...
No começo fiquei imaginei o porquê da mãe ter escolhido especificamente essa menina. Na verdade, isso foi a única coisa que me encafifou na história.
Mas olha como você e a Nanda estavam antenadas! Ambas criaram histórias de mães que não eram mães, que fizeram visitas a um orfanato...
Agora as descrições que você fez!!! RAPAZ!!! Crianças são assim mesmo!!! Amei, amei!!!
Correções:
Esparava - esperava
há poucas ruas - a poucas ruas (porque aqui você está falando de distância e não de tempo...
chama sem parar de Fofinho enquanto estala os dedinhos para chamá-lo,
Chama/chamá-lo - aliteração
Aqui eu chorei mesmo!
"Ela se pendurou no meu pescoço quando nos despedimos, com um abraço tão apertado que eu achei que ela nunca mais me soltaria. Ela me disse "eu te amo". Meu Deus, por que ela me disse isso de modo tão doce?"
Parabéns, Marcinha, Sensacional seu texto!
Axei sensacional!! Ficou muito bom mesmo!
ResponderExcluirComo a Sammy disse, as coisas nao acontecem assim tao rapido, mas vc passou bem o pensamento.
Axei muuuito bacana mesmo, como uma crianca muda a vida de alguem!
Parabens!!
Mana, seu texto esta muito bom, de verdade.
ResponderExcluirPrimeiro, a ideia de ler um diário da protagonista é muito legal, uma ideia nova aqui no blog e muito bem desenvolvida. Gostei.
Segundo, gostei muito dos trechos engraçadinhos, tipo "Meu Jesus! É normal uma criança fazer tantas perguntas ou eles tomam estimulantes no orfanato?", deixa o texto leve e faz com que a leitura se torne prazerosa. Muito legal!
Li o texto todo rapidinho, tensa para saber se ela ia ficar com a menina ou não, achei muito legal, emocionante, fofo e bem escrito.
Linda homenagem para as mamães que adotam crianças, essas mulheres são como anjos dando segundas chances para crianças abandonadas.
Muuuito obrigada, gente. Escrever esse texto foi bastante emocionante para mim.
ResponderExcluirApesar de eu não ter meu próprios filhos, eu observo e curto crianças sempre que eu posso, por que essas pessoinhas são mesmo capazes de nos fazer avaliar nosso próprio mundo por outra perspectiva.
Emily Eduarda é uma coletânea de pequenas experiências minhas com esses baixinhos. Só para dar um exemplo, a menina que "esculpiu" doce de leite sobre creme craquer, lanchando uma vez aqui em casa, chamava-se Vitória e tinha cinco anos na ocasião. Eu nunca mais esqueci esse dia.
Esclarecendo à Sammy sobre o porque da Germana ter escolhido exatamente Emily, serei breve, mas também é um ponto que vale a pena comentar. (Estou fazendo um pequeno Making off nesse comentário, rss)
Georgina, nossa protagonista, é uma mulher sofisticada e culta, atraída por tudo que intriga seu lado intelectual. Emily, apesar de ser uma criança normal a ponto de achar que assistir "Procurando Nemo" novamente nunca é demais, também possui gostos pitorescos como curtir os clássicos de terror da Universal da década de trinta e as composições de Beethoven e Mozart, além do desejo pelo Ballet, que a própria Georgina estudou quando criança. A propósito, essa parte foi viagem minha, eu nunca tive o prazer de conversar com uma criança que conhecesse Bela Lugosi, isso também seria pedir demais! rss..
Em última análise, a entrada de Emily na vida de Georgina não só a levará ao encontro de outros valores e do que realmente importa, como já surtiu algum efeito. Já foi um caminho para guiá-la no reencontro com sua própria mãe negligenciada.
Obrigada pelas correções, Sammy, já alterei onde foi preciso.
E, por último, a papelada que Georgina assinou é somente o pedido formal de adoção, um primeiro passo. Torçamos para que todos os outros passos dêem certo!
Marcinha, torna o repetir! O teu texto ficou maravilhoso! Você captou a essência das crianças (será que tomam algum estimulante????)
ResponderExcluirVocê escreve umas histórias tão boas, que a gente fica esperando continuações!
Não nos deixe na expectativa, guria!!!!
Li duas vezes e fiquei encantada Marcinha!
ResponderExcluirO que mais me impressionou foi sua narrativa em forma de descrição em um diário. Ficou surpreendente!
Leve, engraçado, emocionante e inédito (pelo menos pra mim.
Vou confessar uma coisa: sempre me surpreendo com seus textos...dá gosto de ler!
PARABÉNS!
Amei essa frase:
"A parte mais interessante foi vê-la "esculpir" a pasta de nozes sobre a torrada integral. Creio que nem Michelangelo tenha alisado uma superfície com tanta concentração nem por tanto tempo."
Comenta aê!