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Inocência
Posted by Baltazar Escritor
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6 de agosto de 2012
10:00
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O Relicário, o antiquado e monótono museu de cera. Não é horário de visitação, nem ao menos as luzes estão acesas. O vigia não se preocupa se vão levar as estátuas, que levem todas ele pensa. Elas lhe dão medo, um medo impalpável, irremediável, incontrolável. É hora da segunda olhada da noite, ele ainda não liga as luzes, passa correndo, com a lanterna ligada, pelo saguão das exposições. Algumas das obras parecem se mexer quando a luz as toca, ele corre mais rápido e se tranca na sala das câmeras. De lá ele vê tudo, desde Hitler até Napoleão, Michael Jackson, Durante Alighieri, tantos rostos olhando pra ele. Rostos sem vida, tão sem expressão e tão autênticos que parecem estar esperando algum sinal para pularem de seus pedestais e caminhar pelo museu. Ali, da sala das câmeras, ele já viu isso acontecer, naquela época ele ainda acendia as luzes.
A estátua chamada de "Inocência", que não retratava ninguém conhecido, foi a primeira. Ela estava no porão, com teias de aranha cobrindo seu corpo nu e repleto de poeira, as luzes acesas até mesmo ali, pois foram levados para lá naquela manhã os homuncolos que personificavam Einstein, Cristovão Colombo e Al Capone, personagens não mais atrativos para o público, e os carregadores esqueceram de desligar a luz.
Ele teve que descer até lá apagá-la, as luzes dos corredores estavam acesas, ele não precisou carregar a lanterna no cinto. Ao chegar no porão viu que Einstein tinha recolhido a língua, que antes antes mostrava descaradamente, mas pensou que fosse imaginação sua, uma peça que o serviço noturno lhe pregava, apagou a luz e subiu novamente até a sala das câmeras. Ao chegar lá reparou que a luz estava acesa no porão novamente, isso só poderia ser brincadeira do outro vigia, um rapaz mais jovem, que tinha dois meses a mais de empresa do que ele, pelo rádio contatou o companheiro.
— Moreira.
— Fala, Robinsom.
— Você acendeu as luzes do porão?
— Não.
— Então vá lá e apague.
— Mas...
— Apague.
— Tudo bem.
Moreira, um garoto estabanado grande e forte como um touro, foi e apagou a luz. A nesga de brilho que partia do corredor só iluminava uma das estátuas agora, uma obra do grande Hourve DeLabri intitulada "Inocência". Robinsom quase caiu da cadeira quando viu a estátua, que antes estava repleta de teias de aranha, se levantar e acender a luz. A mulher nua voltou a sua posição pétrea no chão e poeira e teias de aranha voltaram a cobri-la como mágica.
Moreira voltou ao ver que a luz que tinha apagado se reacendeu, na cinta tinha pendurados apenas a lanterna e uma arma de choque, não fez menção de pegar nenhuma das duas. Ele atribuía o fenômeno a um defeito no interruptor das lâmpadas e apagou a luz pela segunda vez. O rádio no bolso da camisa apitava.
— O que é agora Robinsom?
— Saía rápido daí!
— Hã?
— Não posso explicar, saia.
— Me diga pelo menos...
Robinsom viu Inocência se levantar, ela se aproximou de Moreira pelas costas e o abraçou, ele derrubou o rádio no chão e se virou rapidamente, pela câmera conseguiu ver a expressão de idiota do companheiro quando reparou que a mulher estava sem roupa, ele sequer reagiu quando ela o beijou. O rapaz não controlava as mãos e as esfregava indecentemente pelo corpo nu da Inocência. Ela começa a acariciar o rosto parrudo de Moreira, só que a cada toque é como se tirasse um pedaço da cabeça do jovem, como se ele, não ela, fosse feito de cera.
Os pedaços foram caindo pelo chão até que o corpo ficou totalmente sem cabeça e desabou sem vida. Ela se estica, como se estivesse espreguiçando os membros, e acende a luz. As outras estátuas começam a fazer o mesmo, como se despertassem de um sono profundo, elas se reúnem ao redor do que minutos antes era um dos vigias noturnos e devoram o corpo tão avidamente que nem uma gota de sangue sobra no carpete velho do porão.
Elas seguiram pelo corredor e tocavam com a ponta do indicador entre os olhos das outras estátuas, onde brilhava, para apagar em seguida, a imagem de um pentagrama invertido. Elas também começavam a se mover, outras, incluindo a de J. Kennedy, não saim do lugar e não apresentavam o pentagrama. O cortejo de esculturas de cera se dirigiu para as portas, forçando as trancas, a Inocência à frente, como se farejasse o ar, então ela vira o rosto para a câmera no teto do saguão de entrada e ruma para a direção da sala onde Robinsom ainda estava apavorado e sem saber se o que via era real. Ele finalmente se mexeu e começou a empurrar os armários para a frente da porta e a rezar com toda a fé que possuía, depois se escondeu debaixo da mesa, no momento que as estátuas começavam a forçar a porta. Ele ouviu uma voz gélida, profunda e sem vida, como se fosse uma gravação ou o som de um brinquedo de corda.
— Não se esconda, venha pra mim!
Não precisava ver para saber que era ela, a Inocência.
— Venha, me deixe te amar loucamente. Me beije, me faça carinho.
O cheiro de podridão começou a se fazer presente, dando uma força terrível as palavras que vinham do outro lado da porta. Aquela voz era apavorante, maligna e repulsiva.
Até que do nada ela se calou, os sons de mãos arranhando a madeira também pararam. Eram quase quatro da madrugada do dia vinte e dois, solsticio de inverno.
Depois de muita terapia ele volta ao trabalho, já se passaram dois anos e o medo ainda é seu único companheiro, ninguém iria substitui-lo em seu posto, tão pouco ele queria mudar. As sessões de terapia o fizeram perder o interesse pelo cotidiano, mas não o fizeram perder o medo.
Dois anos depois, era solsticio de inverno novamente e ele estava sozinho. Tinha tomado o cuidado de não deixar ligada nenhuma luz, a porta da sala das câmeras tinha sido blindada por sua causa. Foi quando percebeu pela câmera do corredor que alguém caminhava lá dentro com uma lanterna ligada e se dirigia ao porão, iluminando Inocência. O vulto olhou para a câmera posicionando a lanterna embaixo do queixo, como quando as crianças vão contar histórias de terror, e Robinsom o reconheceu das fotos. Ele era Hourve DeLabri, o escultor que abriu o museu. O vigia começou a chorar e a rezar, sabendo ser em vão.
Colocou a cabeça entre os joelhos e começou a recitar o mantra sagrado.
— Não é real! Não é real! Não é real!
A luz da sala se acendeu de repente.
— Claro que é real meu amor. Agora vem pra mim.
Inocência estava de pé, nua e com os braços abertos. Ele enxugou os olhos com o antebraço e se levantou, o cheiro de podridão ali novamente, só que mais intenso.
— Isso querido, vem e me ame, como eu te amo.
Ela o abraça e o beija, arrancando sua cabeça com um movimento rápido.
Robinsom encontra a escuridão.
Espero que tenham gostado. Telma, desafio respondido.
6 comentários:
Apenas duas palavras: Chocante... Demais!
ResponderExcluirNossa! Terror de primeira hem!?! Juro que essa história me deu medo.
ResponderExcluirGostei muito.
Parabéns Balta.
Balta, realmente adorei esse texto. Bem denso, com bastantes detalhe interessantes. Adorei. Fiquei com muita pena do Robinsom.
ResponderExcluirAgora, esse trecho aqui me soou estranho. Se pularem está no plural, porque caminhar não está? Não sei qual o português correto neste caso, mas, para mim, soou estranho:
"tão autênticos que parecem estar esperando algum sinal para pularem de seus pedestais e caminhar pelo museu."
Ops... não foi o Kbeça aí em cima, foi a Nanda! A máquina estava logada na conta do Kbeça, foi malz!
ResponderExcluirEu me dirijo às estatuas na terceira pessoa, daí o verbo não passa pro plural, na mesma situação vemos:
ResponderExcluirExiste o casal inseparável, mal esperam para sair e caminhar pela praça.
Me esqueci o nome que isso tem, mas é uma regrinha de gramática (Se eu me lembro dos meus tempos de colégio.
Caramba! *sem fôlego*
ResponderExcluirBaltazar, só hoje consegui realmeente parar para ler. Li no dia em que você me falou que havia escrito mas quis ler melhor novamente e o fiz agora:
MA-RA-VI-LHO-SO!
Minha nossa! Como gosto desse tipo de estórias!
Amei!
Amei!
Amei!
Ainda vou fazer o desafio do vídeo. Espero que saia essa semana.
Comenta aê!