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Desafio Muito Desafiante by Marcinha

Posted by Marcinha on 11 de outubro de 2013 06:00 in , , , , , ,
Olá, retalhenses e leitores!
Nossa Paty bolou um "desafio muito desafiante" para nós todas. Nele, partiríamos de um mesmo início, para desenvolver uma aventura pessoal, cada uma ao seu modo. Eis aqui de onde partimos:

“Uma viagem inesperada de trabalho foi requisitada, e você só teve tempo de juntar algumas coisas pessoais e seu inseparável livro, que nos últimos dias ocupava não só grande parte do seu tempo quanto também de sua mente. Era uma viagem curta para uma cidade do interior, então você não precisou se preocupar com aparências, e deixou-se relaxar sobre a poltrona reclinável enquanto absorvia com avidez a escrita inteligente e sedutora da autora. Quando se deu conta do tempo, o sol já se recolhia no horizonte traçando linhas alaranjadas sobre o verde da paisagem, e sua mente viajou por aquelas imagens... e de repente tudo ficou escuro. Você só sentiu uma forte fisgada na nuca e o som brusco de uma freada.”

Me apaguei à idéia do livro, e quis homenagear uma autora da qual sou fã; tive a pretenção mergulhar em seu universo e contar minha história permeada em sua magia. Quis exalar a atmosfera, os sentimentos, os dilemas, a sensualidade e a visão que encantam em seus muitos volumes publicados. Espero ter conseguido.

 Viagem Sombria


Depois de tanta correria, finalmente havia me acomodado na poltrona do ônibus de viagem. Jogara uns poucos pertences dentro de uma mochila; minha agenda, meus celulares, o livro que venho devorando nos últimos dias. Pretendia ficar fora apenas dois dias, o que seria mais do que suficiente para fazer o orçamento da personalização de três carros antigos de um único dono, em Paraty. A insistência do homem, seu entusiasmo por ter conhecido meu trabalho e a enorme bonificação em dinheiro que me oferecera apenas pela minha visita e orçamento me fizeram largar tudo e viajar.

Recostei-me na poltrona do ônibus assim que pegamos a estrada, e abri meu livro mais uma vez. Mergulhei nas sedutoras páginas de Anne Rice, com sua visão poética e melancólica do mundo dos vampiros. Que imaginação ela possui, e que sensibilidade! Seres sobrenaturais com dilemas totalmente humanos. Me fundi mais uma vez ao segundo volume das Crônicas Vampirescas, esquecendo do mundo ao meu redor.

A medida que a luz do dia baixava, tornou-se impossível continuar a leitura. Aproveitei o quanto pude e, em dado momento, abracei-me ao livro e passei a observar a paisagem. O céu exibia o belo azul profundo que antecipa a noite e havia pouquíssimo movimento naquele trecho da estrada, o que permitia que a cantoria das aves permeasse tudo à volta. Muitos e muitos metros para trás e para a frente do ônibus só havia estrada e mata nativa. Apenas a natureza, intocada, gigantesca... e um ônibus intruso, cruzando uma solitária pista de asfalto, como única marca de civilização naquele trecho selvagem entre a serra e o mar.

De repente, ouvi um barulho seco, como metal partido, e uma freada. Senti uma forte fisgada na nuca e a escuridão desceu sobre mim como um véu. Nem mesmo compreendi o que acontecia.

Em dado momento, abri os olhos, pesadamente, tentando me situar. Sentia-me como se tivesse acordado de uma longa noite de sono. Estava escuro. Entre as árvores pude ver as estrelas no céu, bem a minha frente. Deduzi que estava deitada no chão; mexi os braços, tateei o chão molhado, a terra e as folhas caídas formando uma espécie de lama. Tentei me levantar, não consegui. Tentei novamente erguer meu corpo, me apoiando no cotovelos. Dor. Todo o meu corpo doía horrivelmente. Respirei fundo e desisti por um instante, tentando recobrar as forças. Comecei a ouvir os gemidos dos outros passageiros. Um acidente. Um acidente bem feio pelo jeito. Comecei a entrar em pânico, me sentia fraca, e não conseguia mais respirar com naturalidade. Meus olhos se encheram dágua.
 
Então eu o vi. Caminhou em minha direção, um homem vestido de cinza escuro, e se agachou ao meu lado. Não exibia ferimento algum, nem me lembrava de tê-lo visto antes no ônibus. Achei que vira o acidente e viera ajudar. Ele me olhou fundo nos olhos e toda a dor que eu sentia saiu da minha mente. Ele tinha olhos azuis que pareciam cintilar em tons de violeta, e cabelos loiros densos e cacheados que tocavam seus ombros. Fiquei imaginando se aquele belo anjo viera me buscar.

- De certa forma, sim, vim buscar você. - ele me respondeu, como se lesse claramente meu pensamento - É sua única chance, Márcia. Não há tempo.

- Tempo? O que houve? - indaguei, confusa.

- Você perdeu muito sangue. E não há socorro a não ser a quilômetros daqui. Não há tempo para você.

- Não! - protestei, e me ergui nos cotovelos com minhas últimas forças.

Finalmente percebi a mim mesma. Estava presa nas ferragens do ônibus, com ele tombado de lado na mata, cobrindo metade do meu corpo. A lama na qual eu estava deitada era meu próprio sangue.

- Lhe darei a vida eterna, se você desejar. - ele me disse - Será sempre bela e sedutora como é agora, e me terá para sempre ao seu lado. Apenas peça. Peça para ser como eu.

Desatei a rir. Bela e sedutora, eu? Sim, claro, ainda mais imersa em uma poça de sangue, eu deveria estar um tesão. Eu não conseguia parar de rir, e já começava a me engasgar e cuspir sangue.

- Você quer ser como eu? Me responda agora! - exasperou-se o belo loiro agachado ao meu lado.

- E o que você é? - indaguei, em desafio; coisas impossíveis se passavam na minha mente.

- Você sabe, e sabe quem eu sou. Diga. - ele me observou, severo - Diga!

- Lestat... o vampiro. - respondi, desistido de enfrentá-lo; eu estava a ponto de desfalecer.

- Boa menina. - ele pareceu aliviado - Diga que me quer, como eu a quero. Diga que quer ficar comigo. É a única saída pra você. Diga, agora.

Pensei em meu marido. Pensei em nossa convivência, cheia de harmonia e amor nos últimos tempos. Pensei em nossos planos, na vida boa que teríamos juntos depois que todos os problemas que juntos enfrentávamos fossem resolvidos. Pensei em todas as nossas conversas, todos os sonhos, todas as metas. Tudo o que significávamos um para o outro. Meu companheiro, "eu e ele contra o mundo", ele me disse sempre. Pensei que ficaria com ele para o resto da vida. Mas agora eu estava morrendo.

Pensei na minha irmã, e em todas as vezes que ela disse que me amava, e eu sabia que era verdade. Pensei em mamãe, a mãe do meu marido, que me acolheu no coração como se eu fosse filha dela. Pensei nas minhas amigas de blog, e como elas nunca saberiam que pensei nelas nessa hora, inclusive naquela que não está mais no blog, mas está sempre nos meus pensamentos. Pensei em mais algumas pouquíssimas pessoas que habitam meu coração. Nunca mais as veria. Eu estava morrendo.

- Vai se entregar ao pó, sem lutar? - exasperou-se novamente - Você pode viver! Pode viver por mais tempo e mais intensamente do que viveria em dez vidas mortais! Apenas me diga que quer! Diga, agora!

- Lestat... eu quero. - respondi com dificuldade.

Ele me envolveu em seu abraço, com urgência. Senti a perfuração da garganta, como a espetadela de duas agulhas. Então a paz... um bem estar indescritível se apossou do meu corpo, como um êxtase, como se eu pudesse tocar o paraíso se apenas esticasse os dedos. Agarrado a mim ele sugava o pouco que havia restado do meu sangue, levando-me a fronteira da morte, onde nossos corações rufavam juntos como tambores em meus ouvidos.

Afastou-se de mim bruscamente, como se o fato de se obrigar a me soltar fosse doloroso para ele. Então rasgou a própria garganta com uma unha, e tornou a me abraçar, oferecendo-me o sangue que vertia do corte.

- Beba. - ele ordenou; sua voz era pura sensualidade.

Colei os lábios em seu pescoço, e o suguei como em um beijo selvagem. Sentia o sangue quente e espesso descer-me a garganta, matando a sede que me ressequia. Bebi dele longamente, sentindo a pele lisa do pescoço, os cachos loiros a roçar-me o rosto, o cheiro da sua pele, que me lembrava amêndoas. O sangue doce que me alimentava e preenchia toda a minha existência, dava sentido a tudo, e eu poderia beber dele eternamente. Tudo que eu fui, tudo que senti, tudo o que almejei ia se apagando em mim rapidamente. Se havia Paraíso ou Inferno, o que era ou não pecado, se as Grandes Leis foram realmente ditadas por Deus, nada disso me importava. Não havia mais nada em minha mente que não fosse aquele anjo negro que me oferecera uma nova existência na hora de minha morte. Sentia seus músculos me apertarem contra si, com a paixão dos sobrenaturais, fundido-nos, como se fôssemos um só. Então ele me afastou suavemente.

- Já chega. - ele disse.

Soltei um profundo gemido quando ele se afastou. Olhei as estrelas novamente, quando me prostrei no chão, exausta e saciada. Eram luzes fulgurantes, que pulsavam cada uma a seu ritmo, e eu compreendia que elas compunham uma sinfonia a medida que piscavam entre si. O vento acariciou meu rosto como mãos de fadas, e agitou as folhas nas copas das árvores com uma graça e perfeição que eu jamais vira. As árvores pareciam dançar lentamente, como amantes a meia-luz.

- Oh... então isto é o Dom Negro? - sussurrei - Tudo... é belo... demais...

- Sim, minha criança. É meu presente para você.

- Quero me levantar. - afirmei - Estou presa. Me ajude.

- Mova o ônibus, Márcia. Você tem força para isso.

Lembro-me de ter sorrido. Sim, eu tinha força para isso e muito mais. Ergui a carcaça retorcida do ônibus sobre o meu corpo e o empurrei para o lado. Pus-me de pé.

Olhei para mim mesma, no reflexo de uma das janelas do veículo. Eu havia emagrecido e ostentava um corpo volumoso e torneado, e parecia completamente saudável. Meus cabelos à altura da cintura haviam se cacheado por completo, como sempre foram antes do alisamento. E, sobretudo, o detalhe que mais me seduziu: eu possuía presas. Duas presas agudas e vampirescas assumiram o lugar dos meus caninos mortais. Eu parecia mais selvagem do que nunca.

- Quero caçar com você, Lestat... como li em seu relato, no livro. Aliás, nunca pensei que tudo o que estava escrito fosse verdade, que "O Vampiro Lestat" fosse realmente um livro de memórias. Afinal, então... quem é Anne Rice?

- Minha "ghostwriter". - ele afirmou, com um sorriso travesso.

- Ah, Lestat de Lioncourt... sempre vivendo entre humanos. - brinquei.

- Interagindo entre humanos, sim, minha bela, mas somente isto. Não é possível viver entre eles, ou me apegar tanto a eles quanto eu precisaria. Sou um monstro e, mais cedo ou mais tarde, essa verdade acaba prevalecendo. Preciso de amor de minha própria espécie.

- Ainda não conseguiu isso, não é? - indaguei me aproximando dele, acariciando sua face branca e perfeita como uma escultura de mármore - Magnus, Gabrielle, Armand, Louis... até mesmo Claudia... foram amados por você, mas não conseguiram amar você como precisava.

O anjo loiro baixou a cabeça, pensativo. Ergui seu rosto gentilmente, com ambas as mãos, e beijei os lábios do meu amante eterno.

- Eu o amarei, Lestat. Tenho em mim a mesma ânsia desesperada por amor. Sei exatamente como se sente. Por isso sei que posso amá-lo como você deseja.

Lestat me olhou nos olhos, como se conversasse com a minha alma. Havia amor, gratidão, desejo, cumplicidade e uma promessa eterna naquele olhar azul que iluminava o rosto do meu anjo das trevas. Ele acariciou meu rosto e me disse mentalmente "dois anjos da morte, juntos para sempre".

Então ele me conduziu pela mão, e saltamos para dentro da mata, quase voando. Estávamos indo caçar pela primeira vez juntos. Tomaríamos uma vida juntos, eliminaríamos alguém da face da terra hoje, como faríamos noite após noite para todo o sempre. E eu escolheria minhas vítimas como Lestat sempre o fizera, entre os criminosos, os sem caráter, os malfeitores, os traidores, os desonrados. Sorri de lado, satisfazendo-me antecipadamente com a minha escolha. Eu sabia exatamente quem morreria esta noite.




 


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2 comentários:

  1. PQP Marcinha! Muito bom!!! Amei todo o texto. Emocionei-me no momento em que você estava "morrendo" e lembrando das pessoas que ama... Sorri com suas tiradas... (Bela e sedutora, eu? Sim, claro, ainda mais imersa em uma poça de sangue, eu deveria estar um tesão.)
    Muito bom!!!!
    E temi com o seu " Eu sabia exatamente quem morreria esta noite."
    Parabéns!!!!

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  2. Eu comentei em off e esqueci completamente de vir aqui falar do seu texto em público, mana, foi mal!!!!!!!!!!!!!!

    Tenho medo de saber quem está predestinado a morrer, rsrs.

    Gostei bastante do seu conto, achei que ele era como o da Paty, que o cara era um anjo e tale e coisa aí veio vc e sacou um vampirão gostosão mega poderoso da cartola e eu pensei: uau! Lestat, se ela não quiser, eu topo! kkkkk

    Mandou bem mana, sempre me surpreendendo com alguma reviravolta!

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